Ciclos

Já o escrevi (algures por aqui ou num outro local qualquer, não me recordo bem…) que tudo na vida tem um ciclo. Nasce, cresce, matura-se e acaba por morrer ou, pelo menos, desfalecer. Reedito-o porque este ciclo chega ao fim. Depois de cerca de um milhar de escritos (só neste espaço são cerca de 460 em mais de 2 anos e meio…) fui-me esgotando.

Tenho no entanto uma dívida de gratidão a este e aos outros espaços onde fui escrevendo. Dívida pelas coisas que aprendi, pelo poder de me fazer recordar, pelas pessoas que conheci, que vieram, foram e ficaram. Com ele senti amor, frustração, paixão e amizade, sorri e chorei, corri e fiquei sossegadinho no meu canto. Essa dívida jamais a pagarei, mas fica expressa a minha gratidão.

Não me sinto com capacidade nem vontade de voltar aqui e escrever. Sinto-me incapaz de transmitir coisas com um sentido. Foi tempo que passou e que foi, e será sempre, tão importante. Deixei partes de mim por aqui, em cada post, em cada resposta a um comentário, que fiz questão de não deixar nenhum sem uma resposta.

O que está escrito, escrito está. Não sairá daqui, pelo menos para já. Ficará para quem o quiser ler. Eu vou dar uma  volta, que este ciclo fechou para mim.

A todas as pessoas que leram e comentaram, a todas as que me falaram e tanto me mostraram,  o meu mais sincero e honesto obrigado. Sem vocês nada disto tinha feito qualquer sentido.

Um abraço e um beijo. Com ambas as mãos, como me ensinaram que um beijo devia ser.

Até sempre.


Um dia…

Um dia, não diferente de todos os outros, rasga-se o peito na vontade de surgir um mundo novo, reconfigurado num upgrade sincero e necessário. A vontade fica mais forte do que o caminho fácil que se percorre quase sem se pensar no passo seguinte, tão certo que é. Um dia, talvez, as unhas se cravem na pele e libertem o pouco notado que existe dentro de cada um de nós, aquele que muito poucos se dão ao trabalho de ir em busca.

Esse dia, se e quando chegue, será celebrado em sorrisos sem vergonha, danças exultaras e dessincronizadas, ao som de uma qualquer música que venha de dentro e afogue todo um passado, para que se varra em definitivo de uma memória que não se quer mais.

Um dia, talvez…


Ouvido por aí…

“As lágrimas têm um carácter sagrado.
Não são um sinal de fraqueza mas de poder.
São mensageiras da dor avassaladora e do amor inefável!”

Washington Irving


Bang Bang…


s/t


Um momento…

Lembro-me das viagens de carro em bem mais novo, quando se ficava a admirar as árvores que passavam em corrida pela janela de trás do carro, até ficar enjoado. Lembro-me de colar a testa ao vidro, olhando as guias brancas e como se afastavam ou desapareciam debaixo do carro consoante a curva. Lembro-me de poisar o queixo na palma da mão e deixar correr o tempo com a pressa de chegar. Lembro-me da minha primeira grande viagem nocturna, e desde então fiquei apaixonado por elas, vendo a lua seguir-me por cima de campos de cereais.

Vou coleccionando momentos ao longo do tempo que por mim corre. Agarro-me a eles em tantos outros, não os sobrepondo, mas refrescando a memória dos pormenores que os foram fazendo especiais.

Gosto do meu quarto escuro, vou lá de quando em vez e vou abrindo as minhas gavetas uma a uma, seleccionando os meus momentos, trazer de novo à vida o gosto e o cheiro, como por exemplo da primeira vez que estive sozinho em frente da vastidão de um mar às três da manhã…

Matam-se saudades assim, trazendo num momento um outro que nos faz sorrir, nem que seja por um nanossegundo…

Um momento…

Um simples e pequeno momento pode dar significado a uma vida inteira…


Saber…

…antes de acontecer trás consigo um travo ardente como quem bebe um whisky de um trago.

Queima até ao estômago…


Voltas?

-Voltas?

– Não sei…

Os olhos penderam até ao chão poeirento, onde um sapato quase castanho pela fina camada de pó esboroava um torrão de terra de tal forma que parecia esgaçar as pétalas de um flor.

– Talvez um dia, no teus sonhos…

As palavras ecoaram num qualquer fundo perdido, como se o som viesse de um abismo e apenas lhe chegasse um eco fraco. Apenas o “Não sei…” continuava nítido como se acabado de proferir.

Sentiu os dedos enlaçarem-se no seus e puxá-lo para um abraço e deixou-se ir, lentamente, sentindo como as mãos escorregavam pelo cimo das suas costas espalmadas até se cruzarem e acabarem nos ombros, ao mesmo tempo que a face roçava pela sua até poisar no ombro direito.

Os cabelos soltos tão perto do nariz fez fechar os olhos e vaguear enquanto os seus próprios braços a enlaçavam num abraço forte. Sentia-lhe o calor que repassava pela roupa solta e quase que jurava que lhe sentia o coração bater no peito. Ou seria o seu? A verdade é que sentia o latejar das veias no pescoço fruto da tentativa, até ao momento frutífera, de não deixar cair as lágrimas que já se perfilavam à muito para correr.

Deixou os lábios poisarem na cabeça dela, depositando aí um beijo carinhoso.

Afastando-se do peito dela, puxou-lhe a cara com ambas as mãos para a sua frente. O cabelo à frente dos olhos e as faces enrugadas pelas mãos que as seguravam fizeram-lhe nascer um sorriso.

Gosto de te ver sorrir – diz-lhe. Iluminas…

Os olhos dela baixaram até ao peito e ai deixou um pequeno e sonoro beijo.

– És meu? – Perguntou-lhe ela.

Novamente a puxa ao peito enlaçando-a pelo pescoço e de queixo pousado na sua cabeça para que não lhe visse os olhos responde:

-Sempre. Mesmo que apenas voltes nos sonhos… 


Sei quem és.

Não te conheço.

Mas sei quem és e ao que andas.

Já te vi a rondar por aí…


De filacteras ao esparregado*

Olhava para o prato com os talheres cruzados, pegava na faca e raspava os rebordos escaricados do prato, riscava- o em ponto de rebuçado afastando em dois o mar de esparregado deixando entrever uma pata do cavalinho, o último dos que restava do serviço da casa da avó.

Lembrava-se da açorda doce a escaldar e de empastar os desenhos a papa. Estranho este sabor que detestava por oposição às migas em cevada doce que adorava sem deixar tingir o fundo. Sempre gostara de escultura. Gostava daquelas semi orgânicas que surgiam castanhas feitas de areia líquida, molhada e espremida em raízes e troncos e veias. Daí para o papo seco de manteiga com açucar que rilhava nos dentes ao trincar foi uma viagem rápida. Por alguma razão o cheiro, associava-o sempre ao dos produtos de lavandaria a seco e daqui ao lustro que detestava ver junto aos bolsos, braguilha as e vincos das calças.

Gostava de subir às pedras, das grandes . Sentir-se maior no perder de vista do horizonte, mesmo que com nuvens baixas a adivinhar chuva e vento frio que fazia balouçar como vela enfunada ao capricho do sopro. As mãos inquietas faziam tinir a ponta da faca em diapasão na cerâmica gasta, com jeito burlesco de boca a acompanhar. A imagem do verde em estrada deixando antever o azul fidalgo era limitativo da náusea.

Em mais uma ligação, sentiu falta do cheiro da madeira carunchada, das páginas de um livro velho e do ruído das chinelas a acompanhar o virar das folhas que lia às escondidas da criada da casa, (de que quem gostava de sentir o cheiro e olhar as carnes e refegos), aqueles fascículos das fotonovelas que ela guardava também dos senhores. Eram revistas em banda- fotográfica. Homens dominadores carregados de testosterona e raparigas submissas em não tão ingénua sedução. Tramas com vilão e mocinha, que folheava e guardava frases “Toma, lambe, chupa” que ela levava a ressoar em eco para manobrar a solo o entusiasmo debaixo do lençol num ranger suave das molas e roçar de pano na pele. Sabia-o porque a ouvia ofegar mais rápido. Isto acontecia às vezes, quando dizia ter medo do escuro e ela o levava para junto dele e o julgava dormir ferrado. Lembrava-se do som dos dedos roçando as penugens íntimas mal aparadas quando, em suspenso do respirar, se deixava estar por entre mantas. De manhã, ele olhava depois as carnes e refegos que fazia roçar em si engalanadas a filacteras: “toma, lambe, chupa”…

De como ficava espalmado no intervalo do aparador com a parede de pedra escura, sossegado para que as tábuas do soalho não lhe denunciassem a presença, vendo-a de joelhos encerar afincadamente o chão, fazendo balançar a saia rodada e florida que, ocasionalmente, subia e lhe dava a visão das coxas grossas que tinha sentido perto na noite anterior.

Olhando com mais atenção, reparava como o desenho no seu prato se tinha tornado figurativo das lembranças, dando a pata do cavalinho a ideia da protuberância imaginada.

*Com inestimável contribuição da Phoebe 

 

Imagem retirada daqui.